Lévi-Strauss e os homens que vomitamos

imgSão 10 milhões, aproximadamente, as pessoas encarceradas no mundo. Os campeões são Estados Unidos (2,2 milhões de pessoas presas), China (1,6 milhões), Rússia (731 mil) e Brasil (514 mil).

Mas 60 anos atrás, em seu livro “Tristes Trópicos”, o antropólogo Lévi-Strauss já se preocupava com os “costumes judiciários e penitenciários” de nossa civilização ponderando o seguinte:

Estudando-os do exterior, seriamos tentados a opor-lhes dois tipos de sociedades: as que praticam a antropofagia, isto é, as que veem na absorção de certos indivíduos detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizá-las e mesmo de aproveitá-las; e as que, como a nossa, adotam o que se poderia chamar a “antropoemia” (do grego “emein”, vomitar); postas diante do mesmo problema, escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a esse fim. À maioria das sociedades que chamamos “primitivas”, esse costume inspiraria um horror profundo; ele nos marcaria aos seus olhos da mesma barbárie que seríamos levados a imputar-lhes devido aos seus costumes simétricos. Sociedades que, sob certos aspectos, nos parecem ferozes, sabem ser humanas e benevolentes quando as encaramos por outro.

No início de julho, um funcionário da Secretaria de Segurança Pública do Maranhão informou que houve, pelo menos, dois casos de canibalismo entre os internos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís.

Como se vê, o país que ocupa o quarto lugar em encarceramento no mundo supera a oposição apontada por Lévi-Strauss chegando a uma síntese muito indigesta. Vomitamos homens e também os fazemos devorarem-se.

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Tchau não, Vito. Ciao!

Vito Giannotti gostava muito da canção “Bella Ciao”.

Italiana, ela teria surgido como um canto de camponesas que trabalhavam por temporada em plantações de arroz na planície de Padana.

Tornou-se música de protesto contra a Primeira Guerra e símbolo da Resistência Italiana contra os fascistas durante a Segunda Guerra.

Como muitos dos mais corajosos e determinados antifascistas eram anarquistas, Bella Ciao tornou-se um hino muito identificado com o anarquismo.

Vito também tinha fama de ser anarquista. É que o italiano internacionalista nunca se curvou à ortodoxia stalinista ou qualquer outra. Sempre foi plural em seu marxismo revolucionário.

Desde os tempos da Oposição Metalúrgica em São Paulo, ele lia, debatia, divulgava Gramsci, Pannekoek, Rosa. Não apenas Lenin ou Trotsky.

Outra razão para ser considerado anarquista é que Vito colocava acima de tudo as decisões tomadas pelas bases, aprovadas o mais democraticamente possível. Algo que aprendeu com a história dos conselhos de trabalhadores, seja na comuna parisiense, em Turim ou na Rússia revolucionária, com seus sovietes.

Vito não se incomodava com sua fama de anarquista. Ao contrário, para ele ser revolucionário era inseparável de ser libertário. Por isso, sempre cantava a Internacional Socialista acompanhada de “Bella Ciao”, ambas a plenos pulmões.

Na letra, uma camponesa diz que depois de morta, seu corpo enterrado semeará rosas da liberdade. E é exatamente isso que acontece a combatentes como Vito Giannotti.

Mas é preciso lembrar um detalhe muito especial: “ciao” em italiano não é como o nosso “tchau” adaptado. Quer dizer tanto “até logo” como “olá”.

Então, até logo, Vitão. Continuaremos a te encontrar nas muitas lutas que virão.

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Glossário de uma polícia que extermina

imgBilões: são os policiais mais violentos de cada batalhão da PM paulista.

Caixas-dois: nome dado aos grupos integrados por três bilões, sendo um deles responsável por orientar ou executar o “trabalho”. Costuma ser escoltado pelos outros dois e não usa farda. Geralmente, a equipe atua em sua área de atuação.

Trabalho: extermínio de criminosos ou apenas suspeitos.

Kit-vela ou kit-flagrante: entorpecente e arma fria colocadas nas mãos do cadáver para justificar o homicídio. Eventualmente, um celular também é deixado junto à vítima.

Firma: modalidade de caixa-dois diretamente relacionada a corrupção.

Fritar na resistência: inventar evidências para que a morte pareça ter resultado de um confronto com a PM. Em sua impossibilidade, utiliza-se o “caixa-dois”.

Pelotão de Apoio Operacional (PAO): punição dada pelo comando de alguns batalhões da PM paulista a policiais que se negam a participar de ilegalidades e abusos, como torturas, matanças e grupos de extermínio. O castigo consiste em fazer ronda do lado de fora do batalhão, permanenceno 12 horas em pé, incomunicável, sem poder comer, urinar ou evacuar.

A combinação dos verbetes desse macabro vocabulário resultou, por exemplo, no assassinato de 152 pessoas pela PM paulista, entre 2003 e 2010. Destas vítimas, 48% não tinham antecedentes criminais. Entre as que sobreviveram, 82% não têm passagem pela polícia.

Todas essas práticas criminosas estão detalhadas no artigo “Em cada batalhão da PM tem um grupo de extermínio”, de Tatiana Merlino. O texto faz parte do livro “Desmilitarização da polícia e da política: uma resposta que virá das ruas”.

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Vito Giannotti (1943…)

imgÉ foda! Vito se foi.
Nos deixou um monte de ensinamentos.
Um dos mais importantes: continuar aprendendo sempre.
Tudo isso em meio a muitos palavrões carinhosos.
Mas ele tá muito vivo, porra!

Agora, um pouco de luto.
Só o bastante pra continuar na luta que ele jamais abandonou.

Bem unido façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional…

Valeu, Vitão!

Fragmentos de uma história militarizada

1103CO06:interna.qxdUma característica importante do militarismo é a prontidão para atacar o inimigo. Em princípio, um inimigo externo. Em casos como o brasileiro, porém, a militarização do Estado prioriza o ataque a um inimigo interno. Mais precisamente, aos pobres.

Uma das raízes deste processo foi a escravidão. Foi o medo da reação de uma grande parte da população submetida ao mais vergonhoso e cruel cativeiro. Por isso, um jornal carioca na virada do século 18 para o 19 dizia: “Precisamos de uma polícia que a nós (referindo-se aos senhores) inspire confiança e aos escravos infunda terror”.

Mas finda a escravidão, a extrema desigualdade social persiste e se aprofunda. A polícia do estado de São Paulo, por exemplo, passa a se inspirar na doutrina adotada pelo Exército Francês, em 1906.

Esta mesma polícia tem em seu brasão 18 estrelas. Cada uma representando uma vitória militar. Delas, apenas uma lembra o combate a um governo. O de Getúlio Vargas, em 1932. Todas as outras referem-se à repressão contra revoltas populares, como a Rebelião de Canudos, Revolta da Chibata e a Greve Geral de 1917, em São Paulo.

O conhecido instrumento de tortura chamado “pau-de-arara” não surgiu durante a ditadura militar. Seu nome faz referência aos trabalhadores rurais que chegavam do Nordeste nos anos 1950. Qualquer conduta considerada indevida pela polícia era tratada como crime, punido com suplícios no “pau-de-arara”.

Estes exemplos mostram que a militarização da polícia não surgiu com a ditadura empresarial-militar de 64. Esta apenas a aperfeiçoou, generalizou e a deixou como herança intocada, que ainda despedaça almas e corpos de pobres e rebeldes.

Essas informações estão no livro “Desmilitarização da polícia e da política: uma resposta que virá das ruas”.

Leia também: A criminalização da pobreza e sua “policização”

Quando a inocência não compensa

imgComeçaram a sair as primeiras sentenças de condenados envolvidos na Operação Lava-Jato. Paulo Roberto Costa, alto funcionário da Petrobras, fica em prisão domiciliar até outubro. Depois disso, só aos fins de semana.

Dalton Avancini, ex-presidente da empreiteira Camargo Corrêa, cumpre prisão domiciliar. Mas a partir de março de 2018, pode progredir para o regime aberto.

Por enquanto, o único empresário que vai “puxar cadeia”, mesmo, é João Auler, ex-presidente do conselho de administração da Camargo Corrêa. Isso porque ele rejeitou assinar delação premiada como fizeram os outros dois.

As penas estão sendo consideradas leves pela grande imprensa. Levaram o jornalista Janio de Freitas a comentar em sua coluna de 22/07: “Nenhum dos premiados poderá dizer, jamais, uma frase: ‘O crime não compensa’”.

Mas até onde se sabe as sentenças foram definidas respeitando-se vários dispositivos legais. O problema maior não é este. A questão é a desigualdade do acesso aos mecanismos que podem fazer funcionar aqueles dispositivos legais.

É o que mostra, por exemplo, o “Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil”, publicado em junho de 2015. O levantamento indica que em 2012 havia 515.482 presos no Brasil. Deste total, 38% estão detidos sem julgamento. A grande maioria, pobre, jovem e preta.

Os empresários devidamente sentenciados, deixaram de ser cidadãos plenos para serem pessoas que cometeram crimes. Não é o caso daqueles 40% que foram jogados no sistema prisional sem qualquer formalidade jurídica.

Estes últimos mal chegam a ser pessoas. Ninguém nota ou liga quando perdem uma cidadania que jamais tiveram. Por que não haveriam de concluir que, afinal, é a inocência que não compensa?

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A criminalização da pobreza e sua “policização”

15-01-2009 - Cerimônia de Formatura de 677 Praças da Polícia Militar. Foto Carlos Magno

Acaba de ser lançada “Desmilitarização da polícia e da política: uma resposta que virá das ruas”, coletânea organizada por Givanildo Manoel da Silva, o “Giva”. São contribuições teóricas fundamentais, mas também particularmente importantes para armar a militância social na indispensável resistência à brutalização da vida pelos aparatos estatais de repressão.

Um dos artigos é “Desmilitarização da polícia, das prisões e da política: uma pauta necessária a luta pelo fim do capital”. Nele, Camila Gibin traz o interessante conceito de “policização” dos pobres, intimamente relacionada ao fenômeno da criminalização da pobreza. Ela cita Eugenio Raul Zaffaroni, criador do conceito:

 O pessoal policizado, além de ser selecionado na mesma faixa etária masculina dos criminalizados, de acordo também com um estereótipo, é introduzido em uma prática corrupta, em razão do poder incontrolado da agência da qual faz parte.

O policial de baixa patente, capturado por esta estrutura se vê qualificado pela “moralidade burguesa” como “corrupto”. Ao mesmo tempo, lhe é exigido desempenhar funções que desumanizam a si mesmo e àqueles com quem se relaciona em sua profissão.

Assim, o policizado seria, “para a classe baixa, o ‘cão de guarda’ da burguesia que a criminaliza; e para a classe média e alta, o pobre ‘cão de guarda’ que deve responder a seus comandos”. Muitos dos que exigem do policial uma ação rápida e letal também o desprezam por cometê-la.

De um lado e do outro, pretos e pobres matam e morrem em situações que pouco têm a ver com o combate à criminalidade. Tudo a ver com a manutenção de uma ordem social extremamente violenta e injusta.

Conheça o livro aqui.

Leia também: Prisões e quartéis como escolas do crime

Prisões e quartéis como escolas do crime

imgOs especialistas em segurança costumam dizer que os presídios do País são escolas do crime. Muitos do que são contra a redução da maioridade penal apontam essa realidade para dizer que crianças e adolescentes vão ser expostos facilmente a estes cursos intensivos de brutalidade.

Mas há um outro tipo importante de escola do crime, tão brutalizadora como aquelas, mas menos lembrada. São as polícias militares. Pelo menos é o que se deduz do livro “Como nascem os monstros”, escrito por Rodrigo Nogueira.

Ex-soldado da PM, Nogueira está preso na penitenciária Bangu 6, Rio de Janeiro, desde 2009. A sentença que o condenou diz que ele manteve “uma vendedora em cárcere privado por quatro horas, onde ela foi agredida e constrangida a praticar atos libidinosos antes de ser atingida por um tiro de fuzil no rosto”.

Em entrevista à Agência Pública, publicada em 20/07, ele deixou bastante claro que aprendeu a cometer tais barbaridades dentro dos quartéis:

Posso garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo.
Expostos a treinamento de guerra, estes soldados passam por treinamentos violentos para aprenderem a ser violentos. Principalmente, com pobres. Como diz o entrevistado, “preto e pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê o que é.”

É assim que as prisões, transformadas em unidades de especialização criminal, encontram nas casernas policiais seu espelho quase perfeito. Ambas vivem do crime e o realimentam. Dos dois lados, uma maioria formada por pobre e pretos. Uns fardados, outros não. Todos fodidos.

Leia a íntegra da entrevista, aqui.

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Parlamentares trabalham muito, sim. Para nosso azar

imgUm dos maiores favores que a grande mídia faz aos piores políticos profissionais é tratá-los como gente que não quer saber de trabalho e só cuida de seus próprios interesses.

O repelente Eduardo Cunha, por exemplo, foi à TV na sexta-feira e desfiou uma lista de tarefas cumpridas. E ele tem razão. Sob sua presidência, a Câmara Federal trabalhou muito.

Desde fevereiro, foram aprovadas mais de 60 leis, alterações na Constituição e medidas provisórias. A grande maioria delas retirando ou restringindo direitos trabalhistas e sociais. É o caso da liberação das terceirizações e do corte de direitos previdenciários.

Quando anunciaram, recentemente, uma semana de recesso devido aos festejos juninos, os locutores de plantão bradaram: “Vê se algum trabalhador tem uma semana de folga remunerada! Eles dizem que vão visitar suas bases eleitorais. Mentira!”

Esse tipo de afirmação só causa mais despolitização. É claro que deputados e senadores vão visitar suas bases. O problema é que a base da grande maioria deles é formada por mega-empresários. Os mesmos que pagaram suas campanhas milionárias.

Além disso, a atividade parlamentar não deveria ser tratada como um trabalho qualquer. É uma função pública, que, inclusive, deveria ser impedida de se transformar em carreira através de reeleições sucessivas.

Ao invés de cuidar da frequência dos parlamentares, deveríamos verificar a que interesses eles servem quando estão no plenário. Mas isso a grande mídia não quer discutir. E não é à toa. Os que financiam os mandatos dos parlamentares também são anunciantes graúdos dos jornalões.

Então, da próxima vez que você ouvir alguém chamando parlamentares de vagabundos, responda assim: “Quem dera eles fossem”.

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A tragédia grega e a heroica resistência de seu povo

imgDesde o estouro da crise de 2008, a Grécia está no olho do furacão. Não apenas porque sua economia foi afetada de maneira especialmente cruel. Também porque a tradição militante e combativa da esquerda grega é grande.

Desde 2010, foram mais de 30 greves gerais, milhares de manifestações e ocupações, resistência corajosa contra a enorme violência policial.

É esta capacidade que está em jogo, agora, quando tudo indica que as armadilhas institucionais mais uma vez ameacam domesticar a esquerda que chegou ao governo grego.

Mas o primeiro capítulo desta história não é a crise econômica de 2008. É a própria montagem da união europeia. Talvez, seja o único caso na história humana em que uma unificação monetária foi feita antes da unificação política.

Os resultados não poderiam ser mais trágicos. E não só para a Grécia. É o que já avaliava a pílula A Europa corroída por sua moeda, assim como outros textos que, desde 2010, têm a crise grega como preocupação. Abaixo, alguns deles.

Europa, porcos e sereias
Sexta-Feira 13 na Grécia
As cascatas da mídia sobre a crise
As mentiras sobre vida boa dos gregos
Presente de grego para os gregos
Grécia: quando cachaça é eutanásia
Porque os gregos estão tão putos
Grécia: os riscos da consulta ao povo
Os gregos, cada vez mais putos
Eleições gregas atrapalham, diz ministro alemão
De olho nos ovos dourados da galinha grega
A cigarra grega nas garras das formigas capitalistas
A Grécia como laboratório da extrema-direita
As serpentes no berço do Syriza
Grécia e Alemanha. Quem deve a quem?